ARTIGOS

O fogo e os campos no vale do rio Preto

As águas escasseiam ainda mais e a fumaça dos incêndios deixam o horizonte indistinto, nesse atípico início de primavera de 2002, quando as chuvas são esperadas e não chegam. Centenas de pessoas estão envolvidas em combates a incêndios em todo o Estado, e temos imensas perdas de florestas e solos.

Em meio à seca, subimos o mata-cavalo a partir da Maromba, em Itatiaia, com Paulo Isidoro, fiscal do Parque Nacional do Itatiaia, e Júlia Couto, bióloga da Escola Técnica Rural Mantiqueira, dando continuidade à avaliação da dinâmica recente da vegetação nas áreas historicamente perturbadas por incêndios, dentro e no entorno do Parque Nacional do Itatiaia.

Em toda a região, a decadência da pecuária leiteira, a adoção de outras atividades econômicas tais como os serviços relacionados ao turismo, e também a maior limitação ao desmatamento dado o desenvolvimento e maior cumprimento das leis ambientais, levaram a um generalizado abandono das pastagens e retomada da cobertura florestal em muitos lugares.

No caminho da Serra Negra, em uma outra excursão, partimos de informações fornecidas por Paulo Isidoro sobre as datas dos incêndios e formas anteriores de usos da terra e constatamos vigoroso retorno da floresta, com crescimento pujante de Araucaria (pinheiro-do-Paraná) e Podocarpus (Pinheiro-bravo), principalmente nas áreas mais úmidas, como no Vale do Aiuruoca, a partir da década de 80. Nos trechos mais secos, as pastagens vêem sendo substituídas por candeia e por pequenos arbustos, muitos do gênero Baccharis, da família das compostas. Na parte mais alta da trilha, próximo à cumeeira da Serra, os incêndios freqüentes mantêm os pastos, ainda utilizados pelo gado andarilho. São os chamados campos nativos, áreas tomadas das matas, mantidas baixas com amplo emprego do fogo, mas sem semeadura de gramíneas.

A área que percorremos desta vez tem história um pouco diferente. A trilha se dirige ao Rancho do Boiadeiro, que no passado era um abrigo mantido por fazendeiros e pelo parque, em comum acordo para apoiar atividades de ambos. Ali era passagem costumeira da população dos vales, e era acesso a Itamonte, para quem vinha de visconde de Mauá. Houve depois destruição do rancho, por parte de outros usuários, e paralelamente a área foi sendo abandonada como pastagem e caminho de tropa. Uma ampla extensão de campos, no coração do planalto, é considerada como área de recuperação, de acordo com o plano de manejo do parque de 1982, por conta das atividades passadas.

Para se chegar a esta área aberta atravessa-se, por duas horas, uma floresta montana fascinante, por seu grau de preservação. Em seus trechos mais planos o sub-bosque se rarefaz, evidenciando a maturidade da mata, antiga, com grande dominância de canelas. As árvores facilmente alcançam 20, 25 metros de altura, algumas com 70cm de diâmetro. Encontram-se troncos caídos no chão, alguns com marcas do machado que os derrubaram talvez há décadas atrás, mas as madeiras resistem à degradação por sua qualidade. Não existem araucárias em meio à mata, mais um sinal da maturidade já que elas são plantas heliófitas, pioneiras.

Não são muitas as epífitas, em comparação com o que se encontra nas matas das vertentes mais voltadas para o mar, como no vale do rio campo Belo ou na Serrinha do Alambari. Em Mauá, o clima mais seco pode desfavorecer as epífitas, que aumentam em abundância e diversidade em consonância com a umidade. O mesmo se observa nas matas mais altas, cujas árvores têm menor tamanho e se retorcem um pouco em um ambiente com mais luz e taquaras. Mas nelas não se proliferam as epífitas, como ocorre nas matas de neblina estabelecidas a cerca de 1800 metros nas faces mais úmidas da montanha, com ocorrem árvores muitas vezes recobertas por barba-de-velho. São abundantes bromélias de grande porte, Vrieseas e Aechmeas, no solo e nas árvores.

A cerca de 1800 metros de altitude a vegetação torna-se aberta. A região foi queimada pela última vez em 1984 ou 1988, nos grandes incêndios que varreram o Planalto. Há ampla cobertura de uma gramínea dominante, alta, que torna grande o risco de incêndio. Muitas candeias ainda pequenas pontuam o mar de capim, ao lado da samambaia Pteridium aquilinum, típica de áreas queimadas. Aqui a regeneração parece se dar muito mais devagar do que na região do vale do Aiuruoca, talvez numa conjunção de menor umidade e maior altitude.

A encosta do mata cavalo é quase toda tomada por candeia, entremeada por muitas espécies típicas dos campos de altitude propriamente dito. Vale dizer mais uma vez que os campos de altitude são uma vegetação cuja distribuição é fortemente relacionada ao clima, ocorrendo em áreas com temperaturas congelantes que impedem o crescimento de muitas das espécies tropicais. Por isso, abrigam muitas espécies típicas do sul do país, ou com parentesco com a vegetação sulina ou dos Andes. A incidência de fogo prejudica as árvores, a vegetação torna-se mais aberta, e muitas espécies dos campos passam a ocupar altitudes mais baixas do que na ausência do fogo.

Por outro lado, a temperatura não é ainda um fator limitante como o é nas maiores altitudes do Planalto, e ao lado destas espécies típicas dos campos, ocorrem muitas outras herbáceas ausentes das áreas mais altas. Foram vistas quatro espécies de orquídeas ainda não vistas por nós a 2400m, incluindo uma Sophronites, e são bastante comuns duas leguminosas da subfamília das papilionideas. As leguminosas são abundantes na mata mas escasseiam em direção ao alto, onde passam a ocorrer leguminosas do gênero Lupinus, habitantes de climas temperados.

Conclui-se então que nesta região entre 1800 e 2000 metros de altitude deverá se desenvolver uma floresta de pequeno porte, na hipótese de ausência de incêndios, e possivelmente as espécies campestres serão expulsas dali com o passar do tempo. Nos pontos mais altos por nós alcançados, a cerca de 2300m, já se vê uma vegetação bem mais característica de altitude, perto da cumeeira. A candeia desaparece e entra com força o capim-de-anta, em fisionomia característica dos campos.

No acesso a essa cumeeira, Paulo nos mostrou grotas que em seu tempo de criança eram tomadas por floresta e hoje são tomadas por capim. Abrigavam minas d´água agora secas, como se observa em todo o Planalto, conforme relato de muitos antigos visitantes.

 

A trilha, em geral, está bem estreita e coberta de folhiço, e aparentemente muito pouca gente a tem percorrido nos últimos tempos, provavelmente como reflexo da sua desativação na década de 1990 por conta da erosão. Note-se que subimos em um domingo ensolarado e não encontramos ninguém. É evidente que há visitantes apesar dos riscos de autuação, e guias de Mauá assumidamente passam por ali com seus clientes. Mas mesmo assim é muito menor número do que se esperaria em caso de abertura oficial, o que permitiria a venda de pacotes turísticos oficiais para o local.

Dentro da floresta, a trilha, atualmente bastante estreita, passa por terrenos em geral pouco inclinados, e a presença de muitas árvores, com suas raízes que conferem estabilidade ao terreno, faz com que o leito seja estável, e o potencial aumento da visitação não é uma ameaça à sua integridade naquele trecho. Acima da floresta, na subida do mata-cavalo, assim chamado justamente pela quantidade de valas estreitas e buracos ao longo da trilha que podem causar fraturas nas montarias, a trilha é sujeita a forte erosão, com sulcos profundos e pequenas porções desabadas.

Se vier a ser tomada a iniciativa de reabrir oficialmente esta trilha, é importante elevar o seu leito em diversos trechos, com a utilização de pedras, por exemplo, fazer canais de drenagem para evitar a aceleração da água da chuva e em alguns pontos mais íngremes realocar a trilha, de modo a estabelecer um caminho mais sinuoso, como já indicado para várias trilhas do planalto pelo Plano de Manejo de Uso Público de 1999.

O fechamento de uma trilha tradicional como esta é uma medida impopular, que encontra diversos questionamentos, muitos deles válidos. É uma medida extrema, de quando não se encontram alternativas para minimizar os danos relacionados à visitação. Por outro lado, o fato é que o fechamento desta trilha tem proporcionado sua recuperação, que seria acelerada se fossem feitas intervenções ativas. Ao mesmo tempo foram reduzidos os impactos provenientes dos acampamentos e usos sanitários sem cuidados. Atualmente é fortemente defendida a idéia de que o investimento na educação dos visitantes para a adoção generalizada de técnicas de mínimo impacto em áreas naturais viabilizaria a entrada de maior número de pessoas por localidade, tornando-se assim uma proposta prioritária. Embora mudanças comportamentais sejam fundamentais, elas são lentas, e sua real efetivação esbarra em uma grande dificuldade – o aumento vertiginoso de visitantes nos parques ao longo dos anos. Essa demanda crescente tem de ser considerada nas decisões sobre manejo.

Não é recomendável contar com a educação sem ter paralelamente os meios de controle e fiscalização. Considerando que a maior carência das Unidades de Conservação é de funcionários para exercer as numerosas funções que deixam de ser realizadas por imensa falta de mão de obra, a reabertura de uma trilha deve ser cercada de cuidados para que não se crie mais uma frente de uso público sem os meios de evitar a degradação da área.

Além da recuperação do leito, a reabertura desta trilha deveria ser antecedida de busca e implementação de meios que possibilitem certo controle sobre acesso e até mesmo sobre o número de visitantes, se esta tornar uma medida importante. Um passo previsto no Plano de Manejo de 1982 e reforçado no Plano de Manejo do Uso Público de 1999 é a construção de guaritas nos acessos às trilhas que partem do vale de Visconde de Mauá, que se torna mais interessante e justificável ao se permitir o acesso às trilhas. No entanto, também esta medida depende de disponibilização de pessoal para trabalhar nos postos avançados, de forma continuada.

Tem sido bastante usada para caminhadas a trilha da Serra Negra, em parte como alternativa à trilha Rebouças –Mauá. Esta região é comparativamente muito mais impactada pelo fogo e pastoreio, ainda é rota de escoamento de produção dos pequenos vilarejos ao longo da Serra e a visitação não confere um impacto significativo além dos que já existem. Parece recomendável que a oficialização desta trilha, também muito bela e cheia de atrativos, seja feita e estudada antes de outras trilhas que passam em áreas mais bem preservadas do Parque.

Setembro de 2002

Katia Torres Ribeiro